#CW87 - Janelas para um novo mundo
Mudança de país, Patti Smith, Gaia Passarelli, Rania Hani e Haruki Murakami.
Mudar de país vem com um combo com o qual precisamos aprender a lidar, porque, por mais que muita gente tenha tentado fazer, não há um manual que nos prepare para tudo que vem no pacote: as alegrias e os percalços, as descobertas e as mazelas, as surpresas boas e as ruins, as saudades doloridas, o distanciamento da família e dos amigos que nos faz (re)criar nossas relações, a solidão e, muitas vezes, o pensamento que insiste que não fizemos a escolha certa.
Qualquer escolha vem sempre com pelo menos uma perda. Mudar de país vem com várias. Não que isso seja ruim, mas quem é saudosista e apegado talvez vá sofrer um pouquinho. Tudo é uma questão de tempo até nos habituarmos aos novos costumes e à nova cultura, mas tem muita gente que tá aqui com a cabeça aí e assim fica por muito tempo. Às vezes, a vida inteira.
Agora, some-se a isso mudar de país numa pandemia. Você começa a descobrir como será a sua nova vida em conta-gotas pela fresta da janela. A fama dos alemães serem mal-educados não te atinge, porque você mal interagiu com eles. Demora mais para se sentir à vontade na bicicleta e são necessários dois invernos para finalmente encará-lo em cima da magrela. A solidão muitas vezes é gigante. A comida às vezes sem sabor.
A ida ao supermercado, que foi um dos poucos programas que tivemos por meses, é sempre uma aventura. Por um bom tempo nós voltamos dele sempre com algum ingrediente errado na sacola. O alívio de ter um tradutor online à mão para não cometer tais deslizes vai por água abaixo quando nos damos conta de que na maioria dos supermercados o sinal do celular não pega. Entre as minhas várias gafes, já aconteceu de eu comprar água destilada achando que era água natural para beber. E, claro, eu bebi.
Eu levei alguns meses estando aqui até eu me mudar de fato para Berlim. Trancada em casa, minha cabeça continuou no Brasil. Meu fuso horário era o de São Paulo, minhas conversas continuavam sendo com os amigos que ficaram para trás.
Foi só com a chegada do verão que uma chave virou, que eu me desliguei da minha antiga vida e abracei a nova, mesmo com suas limitações. Para isso eu tive que me distanciar um pouco da minha vida de outrora, dos amigos e até da família, para estar aqui de corpo e alma. Passei a evitar Zoom para matar as saudades, diminuí drasticamente a troca de mensagens e comecei a ir pra rua. Sofri um bocado, mas fiz uma escolha.
Dei-me conta de que, de todo esse meu novo combo, a lição mais bonita que tenho tido é ver diariamente as mudanças ocasionadas pelas quatro estações do ano. Entender a sazonalidade de tudo que eu como e das flores que compro, de ver Berlim toda enfeitada e espalhafatosa para depois vê-la em sua nudez cinza e escancarada, é de uma beleza poética. É ela o meu afago para seguir em frente.
Enquanto não temos toda a vida cultural acontecendo por aqui, nós temos a rua. Estou aprendendo que a rua é minha também. A cada dia eu aprendo uma coisa nova e sei que ainda tenho uma vida toda para aprender. Por enquanto tem sido como morar numa cidade em que eu nunca estive antes. Tenho apenas uns déjà vus, que parecem ser de uma vida que eu não vivi. Mas agora eu me sinto finalmente aqui.
Para colocar no seu radar:
Nós por aqui estamos adeptos das newsletters e deixamos duas ótimas recomendações para alegrar suas leituras: “Tá todo mundo tentando”, crônicas do mal estar da vida atual, da Gaia Passarelli; e a da Patti Smith, cheia de poesia e devaneios. A última edição foi um convite para dançar no meio da sala.
Para quem está em São Paulo, nós publicamos uma lista deliciosa com os melhores deliveries de restaurantes japoneses para matar um pouco as saudades dessa culinária que tanto apreciamos.
Um dos nossos bares favoritos de São Paulo, o Caracol, está fazendo uma vaquinha para sobreviver à pandemia. Qualquer real já ajuda para não deixar fechar uma das pistinhas mais gostosas da cidade. O Mira (antigo Mirante 9 de Julho) sofreu um assalto e também está passando por maus bocados para não fechar as portas. As doações estão rolando aqui.
Quem estiver com cabeça e tempo para aprender algo novo, eu recomendo esse curso gratuito da USP que discute o conceito do tempo nas artes, na filosofia e nas ciências. Inscrições neste link!
E, como toda semana, para não ficar de bobeira morrendo de tédio, nós fizemos mais uma edição do guia “As boas de fim de semana em casa”, com uma extensa lista de eventos para todos os gostos. Tudo, claro, com apoio do Jack Apple. Bora se divertir um pouco?
Mas antes de ir, eu deixo dois vídeos para inspirar: um sobre a mágica da simplicidade com Haruki Murakami; e um show da compositora, cantora e pianista polonesa Hania Rani, gravado em Bratislava, em 2019. É daquelas lindezas para dar carinho na alma.
Tchau! Bom fim de semana.
Que sensacional esse texto e amei a dica do curso. Já entrou na minha lista!
que delicia de texto pra essa sexta feira, alimento pra alma, obrigada! achava que era só que pensava nao ter feito a coisa certa haha